Quarta-feira, 20 de Outubro de 2010

"Chamsin - Ou como o deserto invade a cidade"

Chamsin - ou como o deserto invade a cidade"

 

Saí de casa e fui agarrada por uma nuvem de poeira e bafo escaldante com sabor a areia uivante,  um vento que queria ser brejeiro, e cuja brincadeira me ia abrasando pelas ruas telavivenses, diluindo os contornos dos prédios e transformando a cidade numa miragem de deserto ocre vista através de uma cortina arenosa...

 

40 Graus à sombra, 13% de humidade

 

...a areia infiltrasse-nos no corpo que resmunga enferrujado num crrrrrrrrrr craque crrrrrrrrrrr: é por isso mesmo que as beduínas se cobrem da cabeça aos pés com vestes escuras, apenas se lhes vendo o brilho daqueles grandes e pestanudos olhos escuros acentuados pelo lápis de carvão natural... afinal, sofrem o Chamsin desde que alguns dos seus clãs ocuparam o deserto do Neguev há muitos muitos séculos atrás...

 

 

 

 

Mas na cidade mais ocidental do Médio Oriente, sem experiência centenária, ignoramos o Chamsin e os beduínos harmozinados ao seu habitat, e vestimo-nos de roupas leves e o sol queima-nos desapiedado e desrespeitoso da nossa modernidade...mesmo quando nos espreita ladino e escondido por um véu amarelado de areia fina.

 

Protegida do sol impiedoso pela pala do boné azul-turquesa, óculos de sol, bloqueador solar total e uma blusa branca de mangas compridas, maldigo o dentista maldito que me marcou consulta para o dia mais quente de Outubro na história do estado israelita, reflectindo que não irá ser uma visita agradável, esta minha visita ao dentista; não que preveja e oiça e cheire as brocas dentárias à distância, mas aquele estar de boca aberta sem a poder fechar e nem poder dizer uma palavra não é o meu estilo, embora não seja tagarela!

 

Entretanto, caminhando pela sombra, ou melhor, saltitando de sombra em sombra, porque estas não são contínuas, evito ainda a tempo um contentor que um operário atordoado pelo calor dirige com gestos cansados pestanejando contra o sol e que pendurado numa corrente grossa do alto de uma grua está ser levantado para a obra do meu lado da rua, mais umas "migdalei" (torres) monstruosas e monumentais que estão a ser construídas nesta área residencial de TA.

 

Como cada movimento excedentário é um cansaço desnecessário no meu passeio forçado, esta mudança de passeio exigida com gestos histéricos de medo pela minha segurança, embora bem-intencionados, deixam-me hiper-mal-humorada, o que é agravado pelo facto de não ir propriamente a caminho de um chazinho e uma partida de bridge com as amigas. A rua está um caos, porque, e apesar de todos os automóveis terem ar condicionado, a qualidade da condução deste país é manifestamente inferior à europeia, sim também portuguesa, e, em dias de calor extremo como este, os condutores parecem sofrer de uma insolação crónica que os faz insultarem-se mutuamente e executarem manobras incompreensíveis. Coitados, e este calor uma vida inteira!

 

Chegada ao destino, o consultório do meu dentista, que é uma estrela na especialidade de cirurgia dentária, mas espartano, e que prefere jogar ténis e ir à praia do que passar o dia a olhar e a trabalhar dentes: dentes jovens, dentes velhos, dentes antigos, dentes cariados, dentes podres, dentes negros, ... e correspondentes gengivas, que me proíbo de descrever, e os doentes medrosos, que pensam que ir ao dentista é um mal inevitável e que ele está ali para os torturar... e por isso só vão quando não têm mais opção e alguns até saltam da cadeira quando vêem os instrumentos de brocagem dentária aproximar-se segurados pelas mãos enluvados do dentista que os fixa olhos nos olhos por detrás dos seus óculos de trabalho assentes numas orelhas destacadas que sobressaem da sua cabeça de Vol de Mort; há uns anos atrás, muitos, ainda nos davam gás; tinha um amigo em Londres que ía ao único dentista que ainda usava gás...gostava de ficar de cabeça leve!

 

O dentista chama-me com um boker tov, manishama (bom dia, como está), enquanto eu lhe observo um halo flamejante no alto da cabeça calva e lustrosa. Esforço a vista e vejo que do lado de fora da única janela do gabinete se elevam umas labaredas irregulares. Bem não será o calor, embora ali no consultório se sufoque. "Dr. David X, Yesh Esh ba rutza" (há fogo lá fora) - digo eu, alarmada. Ele pega naquele tubo de borracha por onde sai o esguicho de água para os tratamentos, abre a janela, e começa a regar as labaredas que saem da caixa externa do ar condicionado com um fiozinho de água dental!

 

Pergunto se não seria melhor chamar o técnico, os bombeiros, já que o horrível cheiro tóxico me faz começar a ficar com falta de ar e a temer pela minha "querida" saúde. "Não eu trato de tudo sozinho, não preciso de mais ninguém" diz o antigo e céptico militar, zangado.

 

Corre para a casa de banho, agarra num balde velho com restos de tinta, faz correr a água leva-o meio cheio e despeja-o por cima do dito.

 

"Deve saber que nessa caixa deve haver gás, Dr. David," digo-lhe eu, a pensar naquelas pessoas que quando vêem o seu jantar a ser devorado pelas chamas do fogão a gás lhe deitam água por cima!

 

"Uhmmmmmmmmmmm", e põe-me a ir-lhe buscar água à fonte, quero dizer -  torneira, agora da cozinha porque fica mais perto.

 

Volto a lembrá-lo que seria melhor chamar os bombeiros. Ofereço-me para ir lá fora ver o que passa. Desço para o jardim pensando se não seria melhor avisar os vizinhos. Procuro a janela naquele labirinto de formas geométricas que formam vários recantos e fachadas do edifício onde será a janela dele e deixo-me guiar pelo cheiro tóxico. As chamas saem cada vez mais felizes e vivaças da caixa metálica decorada com um tapete de relva artificial. Volto rapidamente para cima, encho mais uns baldes de água, enquanto ele nos intervalos esguicha água em arcos frágeis como um velho que já não consegue um jacto decente. Enquanto encho o balde ele passa-me rente, e diz um "slicha" (desculpe), despe a camisa deixando aparecer-lhe um tronco magro e envelhecido, e continua fazendo frente ao fogo como o último Moicano do Karl May.

 

Tusso sem parar e decido que é altura de abandonar este moicano sionista aos perfumes tóxicos e à sua luta quixotesca contra as labaredas. Isto do orgulhosamente só também foi moda na nossa Terra e decido que não serei a sua vítima na terra dos outros.

 

Espero que algum vizinho se tenha apercebido do incêndio e dos seus perigos e que tenha tido o bom senso de ligar para os bombeiros já que o nosso dotado mas insensato dentista mo não permitiu.

 

Iom Tov, à sombra e sem labaredas!

 

Chamsin (1)  - vento quente do deserto

 

Iom Tov (2) - bom dia (desejo um bom dia)

 

 

cristina vogt-da silva, copyright 2010

 

 

publicado por Cristina Dangerfield - Jornalista às 13:07
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Segunda-feira, 18 de Outubro de 2010

Um Ano em Telavive

 Aproveito para escrever neste post uma mensagem a todos aqueles que me têm perguntado onde podem encontrar o meu livro:


 


"Um Ano em Telavive, crónicas de uma portuguesa em Israel" - de Cristina Vogt-da Silva


 


 


Parece que muitas livrarias já não o têm em stock, mas a editora confirmou que ainda têm livros e que as livrarias só precisam de os encomendar junta da editora/distribuidor sempre que haja pedidos de clientes.


 


Poderá encomendar Um Ano em Telavie nas livrarias da:


 


 


Fnac


 


Bulhosa


 


e tb. na Livraria Ler Devagar


 


 


OU então nos sites Internet da:


 


 


Fnac on-line


 


Papiro Editora


 


Sítio do Livro


 


Wook


 


 


No caso de, mesmo assim, não o encontrarem, agradeço que mo comuniquem para se pedir uma reimpressão à editora do livro. Obrigada pela vossa compreensão e paciência.


 


 

publicado por Cristina Dangerfield - Jornalista às 15:43
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